Achada de uma antiqualha curiosa em Tras-os-Montes

Francisco Antonio Carneiro de Maglahães

Francisco Antonio Carneiro de Maglahães. Achada de uma antiqualha curiosa em Tras-os-Montes. Revista Universal Lisbonense, 1845, páginas 545-546

(Carta) Moncorvo, 11 de maio de 1845

4316. Que Portugal foi aos moiros conquistado palmo a palmo ninguem o ignora, e a cada passo e encontram ainda vestigios e monumentos que os recordam, sendo rara a terra onde não dure tradicção de que allí, ou perto, fòra outr‘ora uma provoação d‘elles. 

Distante um puco mais de legua ao norte d´esta villa, existem ainda remanescentes d´uma capella ou egreja denominada geralmente a Mesquita, por ser fama constante que o fòra dos moiros antigamente; pasando depois a templo catholico, o que attesta não só o campanario que ainda dura, e cuja construcção bem se vè não condiz com a primittiva, mas até a propia imagen de S. Maméde, a quem o dicto templo foi consagrado, e que se acha na egreja dos Estevaes, aldeolo a cujo termo pertenece aquelle terreno, e ainda no mesmo lugar ha muita gente que se lembra de ouivir tocar o sino que d´alli tinham para lá transportado, as que depois se quebrou.

Carvalho na sua Corographia liv. 2 do 1º tomo a paginas 420, e 326 falla d´aquelle sitio como habitado antiguamente pelos arabes ou moiros, designando-o pelo nome de S. Mamede, e bem assim de otros dois que distam d´alli emia legua pouco mais ou menos, a saber: Villa-maior e o Castello d´Alarella, cujos vestigios e nomes ainda existem, assim como tamben os da villa da Sancta Cruz, que de todos elles fica mui próxima, situada sobre un cabeço na margen direita do Sabor, e já então povoação catholica, de cujas ruinas foi fundada esta villa de Moncorvo, saindo muitas veces os habitants d´aquella a escaramuçar com os moiros visinhos pelos extensos e planissimos campos de Villarica, o que tudo jámais desmentiu, antes sempre corroborou uma tradicção continuada até nossos días.

Ora aomda que a dicta egreja estaba fundada próximamente a uma quinta mina, e eu tivesse por muitas veces feito tenção de ir examinar o resto d´aquelas antigas paredes, que todos suppunham fundação dos arabes, por ficar núm sitio bastante elevado e terreno escabroso ia pasando tempo sem me acabar de resolver; até que no dia 25 de março pretérito me deliberei com otros amigos, e alguns homens dos Estevaes, a subir ao dicto sitio.

O templo era pequeño, porém mui bem construido, o que se póde colligir pelo que d‘elle existe, e era todo de boa cantaría bem lavrada. Antes da entrada parece havia um atrio, ou alpendre cuja configuração não posso descrever por não existirem d´esta parte mais que os alicerces: seguía-se o pórtico da entrada ue era arqueado e assentava em duas emias columnas redondas, cujos capiteis eran primorosamente lavrados: no arco estavam esculpidos em relevo por toda a face exterior grandes florões similhando tulipas: as paredes já não existem, á excepção de cposa de días varas de añtira da qie ficava para o norte, e o panno da frontera (que era voltada ao poente) desde o pórtico até fechar no angulo da direita: e este pedaço conserva quasi toda a altura, permanecendo ainda o campanario; mas do lado esquerdo sómente se veem já os alicercs, estando d´aquella parte demolido tambem o mesmo pórtico, de fórma que já se não póde conhecer bem sua verdadeira construcção. Em volta de todo o templo internamente, (o que se vê pelo resto das paredes existentes) havia uma faxa saliente á similhança de um guarda-cadeiras, mas mais larga, e em mais alturado que estes costuman estar, finfindo um encanamento muito bem trabalhado; e nas costas do tempo externamente se vê aberta em uma fraga uma sepultura, como ha outras em diversos sitios onde disem habitaram os mouros. O restante é um amontoado de pedras, todas de cantaría, mui bem lavradas, membros desconjunctos d´aquelle antigo monumento. Mas qual não foi a mina admiração quando d´entre aquelles desmoronados pedaços de granito como que soou uma voz repentina e forte, que me disse “mais, muito mais antigo é isto, do que tu pensas”. Era uma inscripção n´um pedestal porventura d´alguma estatua, que foi agora casualmente desenterrado, (segundo disseram aquelles homens dos Estevaes que nos accompanhavam) por alguem que allí tinha sonhado com um thesoiro (no que ainda muita gente accredita): mas como isto tinha accontecido havia días, e d´aquelles bons lavradores poucos ou menhuns sabiam ler portuguez, quanto mais latim, ninguem deu pelo descobrimento.

Tem o pedestal de altura cinco palmos, e de largura, face da frente, quasi dois, e as dos lados puco menos, com sua base no fundo mais larga, e com labores, e no cimo tem uma especie de capitel; e onde devia estar a estatua, ou o que quer que fosse temu m furo ou escavação de quatro polegadas de comprimento, tres e meia de largura, e duas e meia de profundidade, e na face da frente, entalhada n´uma especie de quadro, se lê a seguinte inscripção:

IOVI

OPTIMP

MAX.

VIVITATI

BANIENS.

S.VE….BAS..

………….D.

Infelizmente por ter estado enterrada esta pedra, corroeu-se desfasendo-se as letras que faltam nas duas ultimas linhas que já se não podem ler, mas no do fim está perfeito o D. que era a ultima letra da linha, não podendo significar outra cousa mais que a era de 500 da fundação de Roma; agora se era precedida por outras tambem da conta romana isso é o que se não póde já rastrear.

Teria allí sido em outro tempo uma cidade ?¡ninguem hoje o dirá.

Em quanto a ter sido a egreja mesquita de mouros, não pude descubrir otros vestigios mais, que diversos signaes pelas paredes internamente á similhança de meias luas, que não sei se quereriam significar as luas ottomanas: o que eu sei é que por allí ha vestigios ainda de ser aquillo poveado antiguamente, e achei pedaços de telhas ou telhões d´una grossura quasi de dois dedos, e d´um barro mui duro e vermelho; e disseram os homens que nos accompanhavam que em uma fraga (um bon pedaço ainda acima daquelle sitio) estaba aberta a figura de uma cobra grande: ¿seria aquillo um ídolo ainda do tempo da gentilidade? O que julgo não consente duvida é que naquelle mesmo templo receberam culto ainda os deuses do paganismo; para memoria não quiz eu deixar allí acabar de perder-se aquella fiel testimunha, e mandei conducir (con licença do dono a quem pertencem as ruinas) o dicto pedestal para esta villa, não sem algum custo pois talvez pese para mais de cincuenta arrobas. Ao presente se acha colocado no jardín das casas de mina residencia. É de notar que as letras abertas na pedra conservam ainda uma tinta vermelha dada n´aquelle mesmo tempo¡

Francisco Antonio Carneiro de Malgalhães